Canto II:
~ | Luis Gaspar - O Mostrengo, Fernando Pessoa .mp3 | |
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O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: « Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as repreendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Fernando Pessoa, Mensagem
O Mostrengo
O Mostrengo, presente na Mensagem de Fernando Pessoa, corresponde à figura do Adamastor de Os Lusíadas, de Camões. Como este, é o guardião do Mar Tenebroso, no Cabo das Tormentas, mais tarde denominado da Boa Esperança.
O Mostrengo é a personificação do medo e do receio. Como monstro é uma criatura contrária à natureza, à lei e à ordem estabelecida, mas, ao mesmo tempo, derivando etimologicamente do latim monstrum significa aquele que mostra, que revela. O Mostrengo, ao ser vencido, permitiu a revelação de um novo mundo aos Portugueses.
Tal como o Adamastor, surge como símbolo dos perigos e das dificuldades que se apresentam ao ser humano que quer conhecer novos mundos. É, também, símbolo das histórias fantásticas marítimas que amedrontavam. Ambos são não só o símbolo dos problemas a enfrentar quando se pretende explorar o desconhecido, mas também quando o homem deseja descer ao interior de si próprio.
A figura do Mostrengo mantém toda a simbologia do fantástico que se contava e que amedrontava mesmo os mais corajosos. O poema de Fernando Pessoa simboliza as dificuldades sentidas pelos portugueses na conquista do mar, contrapondo o medo com a coragem que permite que o homem ultrapasse os limites. Ao mesmo tempo, mostra a atitude de coragem do marinheiro português perante aquele ser imundo e grosso, vencendo os seus medos. O homem do leme torna-se o símbolo do Portugal que não tem medo e é representante de um povo de coragem que quer dominar os mares.
Como referenciar este artigo:
O Mostrengo. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-12-06].
Canto I:
Quando vier a Primavera, Alberto Caeiro | ||
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Áudio/voz: Luís Gaspar, Estudios Raposa, 2008
Quando Vier a Primavera
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa